Comida

O restaurante que virou feira

ou porque orgânico é direto do produtor
Letícia Genesini
16 de abril de 2018

Semana passada a Enoteca Saint Vinsaint (não conhece? dá um pause e lê aqui) além de restaurante, virou feira. Na frente do restaurante da Vila Olímpia estava caixotes e mais caixotes com pepino, abacate, mexerica, e tomate — principalmente tomate.

Principalmente porque tudo começou quando Lis Cereja, a chef da Enoteca, soube de uma tonelada de tomate orgânico que em pouco tempo iria apodrecer na propriedade do produtor após uma rede de supermercados haver devolvido o produto, pois estavam “fora do padrão” — uma frase usada para significar muita coisa, geralmente que os vegetais não possuem tamanho ou forma dentro da estética do supermercado (leia mais sobre aqui). No caso queria dizer que eles estavam vermelhos demais, e o supermercado queria tomates menos no ponto para ter mais tempo para fazer as vendas. Nesses casos, o supermercado se dá o direito a rejeitar a compra, devolvendo o carregamento ao produtor, que não apenas arca com o prejuízo financeiro por não receber pela terra já arada e preparada, sementes semeadas, produto já cultivado, colhido e transportado, como também se vê sem ter o que fazer com uma tonelada de comida que irá apodrecer.

Entenda bem: comida, perfeita para o consumo, mas julgada inapta para comércio.

O local que serve tudo orgânico, sazonal e de pequeno produtor (ou criado solto como a chef Lis Cereja mesmo diz) já é conhecido por sempre procurar qual é o passo a mais para tornar a empreitada, a princípio nada sustentável, de se ter um restaurante, cada vez mais um elogio e um exercício do consumo consciente. E os últimos dias foi a hora de dar mais um passinho. Eles adotaram a tonelada de tomate. Primeiro compraram 100kg, e transformaram em molho de tomate para usar na cozinha e vender na mercearia do restaurante. Depois mais 100kg chegaram, eles divulgaram nas redes sociais e abriram a feira em frente ao restaurante vendendo a preço de xepa. No mesmo dia a leva esgotou. Mais gente se interessou, o restaurante Estela Passoni comprou 180kg; a Leveda Pães, mais 10kg; mais 200kg foram para feira da Enoteca… E assim foi indo até que em menos de 1 semana, a tonelada que uma rede de supermercado julgou inapta para venda, foi inteira vendida pelo boca a boca da internet. Os tomates que iriam apodrecer viraram molho, sopa, focaccia etc.

O problema é que a devolução da tonelada de tomate não é um “causo”, como brincamos. Não é algo que ocorre pontualmente. É muito comum. Na verdade, junto com o tomate, eles adotaram outros produtos devolvidos. O tomate marcou não só pela quantidade, mas pela ironia quase narrativa de isso ter acontecido com um produto desejado pela mesa do brasileiro. Quando o preço do tomate subiu, todo mundo sentiu, porque a ideia de ficar sem ele na compra da semana, essa tradição herdada da nossa imigração italiana (porque Brasil antes nem tinha tomate), doía. Pois bem, esse mesmo tomate uma hora indispensável na mesa do brasileiro, foi considerado lixo em outro momento, por um problema de logística da cadeia de produção.

Muita gente fala sem nem pestanejar “orgânico é mais caro”. Pois bem, não vamos nem entrar no mérito que o clima e solo brasileiro não foram feito para plantar tomate, muito menos o ano todo. Nem ainda no mérito do custo de se conseguir a certificação do selo de orgânicos. Muito menos na questão de que o varejo se aproveita que o consumidor crie que orgânico é mais caro para aumentar a margem de lucro. O que este exemplo mostra é o preço, não só financeiro, de uma cadeia longa de produção e consumo.

E aí chegamos à segunda falácia, ainda mais grave, que muitos falam de boca cheia: “precisamos das grandes intervenções da tecnologia na agricultura e na engenharia de alimentos para sanar a fome do mundo”. A fome não é um problema de produção, como já foi um dia (e quando eu falo um dia eu digo, quando o homem ainda viajava pelo globo em busca de terras férteis). Há muito tempo já produzimos quase o dobro para alimentar o planeta todo. A fome é não é um problema de produção. A fome é um problema social. É um problema de distribuição de renda, e de ineficiência da cadeia de produção e distribuição dos alimentos.

Sim, ineficiência. Porque não há outra palavra para falar sobre uma cadeia em que cerca de um terço do seu produto final vai ao lixo. Conte isso a qualquer grande empresário, e procure achar uma indústria em que se joga fora um terço do que se produz. Não faz sentido de nenhum lugar que se olhe. O problema é que o impacto financeiro desse desperdício afeta muito mais a base do que o topo da pirâmide. Assim, para a produção conseguir absorver tal margem, ela precisa ser gigantesca, inviabilizando a produção pequena, local, sustentável. Essa que poderia produzir um tomate orgânico na época certa, sem desperdício de recursos naturais (como a água), sem exaurir a terra, e a preços mais acessíveis.

Quando dizemos, pergunte de onde vem seu alimento, é isso. A cada elo da cadeia o desperdício é maior, exatamente porque a alienação dos processos produtivos também ficam maiores. Falar de desperdício de alimento é algo tão complexo, porque ainda com os números altíssimos nós não o vemos, ele está inserido na lógica da sua cadeia como um mal necessário. O supermercado não se vê um colaborador do produtor, e por isso responsável pelo desperdício na sua transação; assim como o consumidor que não compra uma cenoura torta não se vê colaborador com o ponto de venda, que por sua vez passará a selecionar só o que vende bem.

É por isso que estamos escrevendo esse artigo depois que a tonelada de tomate foi salva. Porque foi bonito ver que algumas pessoas conseguiram fazer aquilo que uma rede de supermercados não se julgou capaz: vender esse tomate a tempo. E eles conseguiram porque também mostraram que o tomate poderia virar confit e durar mais tempo, poderia virar molho ou sopa e ser congelado. Estamos escrevendo para dizer que a cadeia de produção alimentícia não é uma cadeia é uma rede. É horizontal, você pode pular etapas e ir direto ao produtor; você pode sair do automático e ao invés de fazer uma lista de compras, ir à feira e ver o que está na estação e a partir daí buscar uma receita; você pode ser um restaurante e ao invés de apenas servir pratos falar para as pessoas comprarem tomates e irem cozinhar em casa. Se a lógica da produção está errado, precisamos então sair da lógica.

Sim, ele falaram com um público já ingresso nessas questões. E sim, educar o grande público de que comprar quiabo pode ser mais chic que comprar aspargos importados, ou que se algo está caro é porque talvez não seja sua época de plantio, ou que a cenoura torta ainda sim é deliciosa, é algo difícil. Mas é difícil não porque somos seres especiais elucidados e o resto da sociedade não. Porque se tem um saber que é democrático é a burrice e a cultura alimentar. A cozinha não é feita apenas em restaurantes e em reality shows como muitos pensam hoje, ela está em toda casa que tem fogão e acesso a alimentos. Um país com a cultura alimentar que temos, não pode esquecer disso e achar que a cozinha foi feita em palcos. A culinária só será inacessível se acreditarmos no mito da torre de marfim. Se acreditarmos em superalimentos, em ingredientes da moda, em dogmas da alimentação. Seja em restaurantes, ou na casa da avó, a boa comida é feita de barro: de terra e de panelas.

E finalmente, estamos escrevendo esse texto para, se ainda não ficou claro, dizer que não é com terrorismo ambiental, culpa e uma angústia frente aos problemas sociais e de sustentabilidade que vamos resolvê-los, mas sim com responsabilidade, e criatividade – uma boa dose de loucura também vai bem.

Fotos: Lis Cereja