Letícia Genesini
23 de março de 2016

“Hoje vocês vão ouvir falar de tudo menos de agrotóxico”. Foi assim que iniciou a Expedição Farm to Table SP. O evento organizado por Alessandra e Marcelo Ades, juntamente com David Ralitera da Santa Adelaide Orgânicos, promove (como contamos neste post) uma experiência completa na fazenda — do processo produtivo ao delicioso almoço que fecha o dia, tudo semeado pela discussão do consumo consciente. Claramente sabíamos que ia ser um sábado maravilhoso, mas o que aprendemos e vivenciamos por lá definitivamente superaram todas as nossas expectativas.

O dia estava lindo e as pessoas dispostas, ainda que tenham acordado cedinho num sábado para chegar na Fazenda Santa Adelaide, perto do município de Morumgaba, para o café da manhã cheio de delícias dos apoiadores. Entre amigos, namorados, famílias completas com crianças, inclusive de colo e mulheres grávidas — sem medo do sol que já nascia forte —, eu era uma das únicas desacompanhadas. Claramente o programa até nisso se aproxima da comida: é para ser compartilhado com aqueles que amamos. Mas também, assim como o alimento, as descobertas ao longo do dia também nos aproximaram.  

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Imagens: Luiz Henrique Fotografia

Sem muitas delongas nos sentamos para conversar com David, um francês com um português quase que perfeito radicado no Brasil desde 2006, e que, em 2009 criou o projeto da Santa Adelaide Orgânicos dentro da já existente Fazenda Santa Adelaide. Claramente apaixonado pela terra e seus processos, ele não deixa nada nas entrelinhas: “orgânicos é a minha religião”. Mas a religião dele é bem maior e mais complexa do que muitos imaginam.

Se você é apegado ao selo de certificação orgânico ou se é daquelas pessoas que ficaram desesperadas com a reportagem do Fantástico contando sobre os falsos orgânicos, te convido a um bate papo com David. Logo você começará a entender que não usar agrotóxicos é o mínimo que se pode fazer, e que a grande maioria dos produtos agrícolas, mesmo aqueles corretamente certificados como orgânicos (ou seja sem agrotóxicos mesmo) podem ferir e muito a saúde da terra e das pessoas que os consomem.

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Imagens: Luiz Henrique Fotografia

É que além do manejo orgânico e o dito “convencional” (esse eufemismo crasso), há uma cisão maior e mais relevante: a diferença entre a agricultura de insumos, e a agricultura de processo. Agricultura de insumos seria aquela que é baseada no uso de tecnologias para aumentar a produtividade. Nela, o que toca a produção é a capacidade que o homem tem de adequar a terra — seja com insumos convencionais ou orgânicos — ao que ele decide plantar, independente de época ou localidade. Já a agricultura de processo, como o nome diz, respeita os processos naturais, ao invés de tentar corrigí-los: ela segue a sazonalidade das plantas, realiza rodízio de plantio para que a terra não se desgaste, e busca compreender os pré-requisitos da natureza (que plantas interagem melhor quando plantadas juntas, que vegetação podemos deixar crescer para que o solo consiga ter mais água naturalmente ou barrar o vento, etc). Muito mais do que o manejo orgânico, isto requer uma compreensão do funcionamento da fazenda como um ecossistema completo.

(Para conhecer as diversas consequências da agricultura de insumos — que meritam um artigo exclusivo, e por alguém muito mais capacitado — visite este site).

A agricultura de processo é um sistema mais complexo e trabalhoso? É sim. E requer que você esteja disposto a aprender com a terra e evoluir com erros. Mas é um processo mais caro? Não a longo prazo. Certamente é mais barato do que desgastar a terra plantando tomate o ano todo (ainda que sem agrotóxicos) e depois de 5 anos ter que procurar um novo local. E requer também um trabalho da parte do consumidor, de compreender que não há motivos para termos tomate o ano todo, sendo que a época pode nos oferecer muito mais.

Precisamos lembrar de que é possível montar uma salada com ingredientes além de alface, cenoura e tomate. A Santa Adelaide Orgânicos cultiva mais de 100 tipos de plantas ao decorrer do ano, trabalhando com plantas convencionais, plantas esquecidas e PANCs (Plantas Alimentícias Não-Convencionais). Na visita colhemos como crianças maravilhadas, berinjelas brancas (apenas mais um dos 450 tipos de berinjela que tem no mundo), e comemos no nosso almoço ora-pro-nóbis, uma planta nativa e hoje praticamente esquecida (mesmo tendo sido cantada pela tropicália). Aliás, para David, este é o grande desafio da agricultura: voltar a considerar plantas nativas e deixar de lado a fascinação que temos pela abóbora japonesa e a abobrinha italiana.

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Imagens: Luiz Henrique Fotografia

Depois de toda essa imersão, compreendi que a proposta de que temos que nos aproximar novamente de como nosso alimento é produzido vai ainda muito além do texto que havia escrito antes da expedição. A cadeia produtiva deve ser encurtada mais ainda, e isto requer sim mudanças estruturais, mas também é possível iniciar com uma simples pergunta que nos propôs David: “De onde vem meu alimento?”.

Mais importante do que perguntar as questões que parecem não sair da discussão: “é saudável?”, “qual nutriente tem?”, “é orgânico?”, precisamos voltar pra uma questão mais central, e inexoravelmente mais difícil de ser respondida: “De onde vem meu alimento?”. Não há como fugir, selos e conselhos nutricionais não vão assegurar o que é de nossa responsabilidade: conhecer o nosso produtor e como aquilo foi produzido. Reconhecer que não apenas colhemos frutos dessa cadeia, mas fazemos parte integral dela.

Uma proposta que ironicamente parece impossível no mundo globalizado de hoje. É mais fácil saber a origem do alimento importado de grandes empórios, do que daquele da feira. Mas não impossível. Saiba que foi o que propôs David à Alessandra e Marcelo Ades quando eles começaram a ser clientes do Santa Adelaide Orgânicos. E é o que nos foi proposto e passamos adiante. Seja através desta expedição, de outra, ou puxando conversa na feira: “De onde vem meu alimento?”.

 

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Imagens: Luiz Henrique Fotografia