Amigos do Sao Paulo Saudavel
06 de julho de 2016

A fermentação é uma das técnicas culinárias mais antigas da humanidade. Inventada por necessidade para preservar alimentos, não é muito típica nestas nossas terras tropicais brasileira, afinal, nossos antepassados nunca tiveram que enfrentar meses de um inverno rigoroso. Mas mesmo em outros paralelos é uma prática gastronômica que diminuiu com a invenção da geladeira, da indústria dos congelados e das conservas de supermercado.

A perda é nossa, pois os fermentados são uma cultura viva em todos os sentidos, tanto simbolicamente pela sua riqueza de sabores e tradições, como literalmente, afinal trata-se de uma colônia de bactérias, algo que em nosso atual mundo asséptico precisamos muito. Para homenagear essa verdadeira arte culinária, lançamos o “Comida Viva”, uma série de posts sobre fermentação. E para começar com o pé direito, a Ana Sachs conta como foi nossa visita à Cia dos Fermentados, uma marca nova que não apenas traz os mais diferentes alimentos fementados — de kefir à kimchi —, mas vê a fermentação como uma verdadeira filosofia de vida.

Livro bíblia da fermentação. Imagem: Ana Sachs

Livro bíblia da fermentação.
Imagem: Ana Sachs

CIA DOS FERMENTADOS: COMO FAZER UM CHUCRUTE E COMO VIVER BEM EM SÃO PAULO

Por Ana Sachs

O muro alto e branco com um portão simples, também branco, não davam qualquer indicativo de que ali existia uma residência. Parecia mais um terreno a ser vendido ou a entrada de algum galpão de empresa. No meio de uma avenida movimentada, onde passam ônibus e carros sem parar, não podia imaginar o que encontraria. Ao abrir o portão e olhar pra dentro, foi como se tivesse sido transportada para uma outra dimensão. Como se o coelho mágico de Alice tivesse me puxado pelas mãos e eu tivesse ido parar num lugar muito melhor, mais bonito, colorido e divertido. Deixei o asfalto cinza para trás e entrei em um mundo verde, ensolarado, cheio de árvores, flores e plantas. Realmente parecia um pequeno pedaço do paraíso nesta cidade tão dura.

Ao contrário da maioria das casas de regiões nobres, que gostam de se impor nas ruas, onipotentes e onipresentes, mostrando a riqueza de seus donos, aqui tudo estava invertido. O portão escondia esse pequeno oásis, como se o objetivo fosse mesmo que ele pudesse ser desfrutado apenas por poucos e bons. O jardim era a primeira coisa que víamos, mostrando o que, de fato, os donos valorizam: a natureza, o verde, as plantas. É o tipo de conceito de arquitetura que me agrada. Sempre me pergunto por que os jardins ficam nos fundos (quando existem ou quando não são todos concretados) e não na frente das casas. Não seria muito mais agradável abrir sua janela e ver a natureza do que a rua? Não seria muito mais sensato ter sua casa nos fundos, preservada do barulho do trânsito e envolta em árvores? Naquele mini mundo verde em meio à metrópole, as únicas coisas que nos lembravam que estávamos na cidade grande eram o barulho dos aviões que eventualmente passavam e as cercas elétricas (sim, elas estragam a paisagem, mas são necessárias).

Imagem: Ana Sachs

Imagem: Ana Sachs

Já gostei da Cia dos Fermentados e sabia que o curso de Fermentação Natural de Alimentos (o primeiro que eles deram, ensinando a fazer chucrute) ia valer muito a pena ao dar dois passos em direção à casa – e sede – da pequena empresa familiar. Todos os produtos da marca são feitos ali mesmo, com muito cuidado e carinho, de forma artesanal. Ao caminhar pelo jardim, me deparo com a casa ao fundo, e novamente sou pega de surpresa. Com várias paredes em vidro, favorece a entrada da luz natural e, consequentemente, a economia de energia. Um conceito lindo, onde os cômodos não são grudados uns nos outros, mas separados em pequenas casas, ligadas por um caminho de pedras. Lá nos fundos do terreno, o silêncio impera e quase nos esquecemos de que estamos em um movimentado bairro de São Paulo.

A aula aconteceu no jardim, em uma mesa de vidro com bancos de madeira rústicos. Somos recebidos com chá de canela com casca de abacaxi (amo esse aproveitamento integral dos alimentos). Delicioso e perfeito para compor o cenário com o sol que passa entre as árvores e esquenta essa tarde meio fria. Em seguida são oferecidos bolos caseiros, feitos pela mãe de um dos sócios da empresa. O bolo de arroz agrada todo mundo. Farinha de arroz? Não! É feito com arroz cozido, receita secreta de família. Tem ainda o bolo de banana com aveia e um bolo de maçã com farinha integral.

Imagem: Ana Sachs

Imagem: Ana Sachs

Na casa da Cia dos Fermentados, tudo é pensado na sustentabilidade. Um pequeno mundo ideal, que se se espalhasse por todos os cantos da Terra, podia mudar nossa triste história de destruição do meio ambiente. Tem composteira, tem plantas comestíveis no jardim, frutas, vejo sementes de abacate sendo germinadas para serem distribuídas a quem quiser. A água da torneira onde lavamos a mão não vai para o ralo. Ela é coletada em um balde para depois ser usada para lavar o chão, por exemplo. Em todo o jardim, o mínimo de concreto, como deve ser. Apenas algumas pedras para que não sujem os pés na lama em dias de chuva. Aqui, copinhos de plástico passam longe.

A aula começa com uma breve explicação sobre a história da fermentação. Um alimento fermentado é um alimento vivo, na qual micro-organismos presentes no próprio alimento atuam para preservá-lo e impedir a entrada de outros organismos maléficos. Esses micro-organismos são extremamente benéficos para nossa saúde, pois atuam como probióticos e ajudam a povoar a nossa flora intestinal. Essas conservas de supermercado, cheias de vinagre e sal, não são as verdadeiras conservas, pois não há fermentação e, consequentemente, não há micro-organismos — o vinagre mantém o alimento parado no tempo, enquanto a fermentação o faz passar por progressivas transformações. Podem até durar, mas não são alimentos que fazem bem para nossa saúde. A verdadeira conserva leva apenas o alimento e sal, ou o alimento, sal e um pouco de água. O gosto ácido, que parece vinagre, ocorre devido à fermentação natural do alimento pelos bons micro-organismos, processo artesanal e que leva tempo. E vocês acham que a grande indústria pode “perder” esse tempo?

“Hoje, o uso intensivo da fermentação é uma forma de ativismo político, que se opõe à normatização pasteurizadora que se tornou costume e regra, preconizando a adição sistemática de conservantes químicos a cada item de consumo. A industrialização em massa da alimentação não apenas aliena, como também infantiliza, porque nos entrega produtos sempre conhecidos, sempre óbvios e é desastrosa para a qualidade de vida da população mundial, que se encontra vê cada vez mais homogeneizada, abandonando a riqueza de variados patrimônios culturais, lidando com menos e mais pobres opções de produtos, em detrimento de variadas técnicas, culturas e costumes.”, contam os fundadores da Cia.

Temperos para o chuchrute. Imagem: Ana Sachs

Temperos para o chuchrute.
Imagem: Ana Sachs

 

Imagem: Ana Sachs

Imagem: Ana Sachs

Coloco meu avental, que ganhei da avó do meu marido há alguns anos, e sinto uma sensação diferente. Não que eu nunca tenha cozinhado na vida. Mas ali, naquela aula, senti algo diferente. A sensação de aprender uma técnica milenar, de quando geladeira era algo inimaginável, saber que isso que estávamos fazendo pode ter salvado muitos da fome, que, durante séculos, essa era a única maneira que existia de preservar os alimentos, me encantou de uma tal forma que me senti, de fato, fazendo algo especial. Simples, porém, especial. Talvez tenha entendido apenas neste momento o encantamento que algumas pessoas têm pela arte de cozinhar. Pela química da cozinha. Que vai muito além dos sabores e de saber juntar ingredientes. Realmente é uma ciência. Fiquei com vontade de aprender mais.

Depois de higienizarmos as mãos, começamos a picar o repolho para preparar o chucrute (ou sauerkraut, um prato típico da culinária alemã). Depois de picado, o amassamos com as mãos para que ele solte água. Isso foi outra coisa que me marcou, colocar a mão na comida. Esse ato simples parece que transfere sua energia para o alimento. Você cria um laço com o alimento que simplesmente pegar um pacotinho de plástico e abrir não proporciona. Comida feita por máquinas nunca vai ter aquele amor e carinho que uma comida feita por um ser humano terá. Por isso, nunca penso apenas nos ingredientes do um alimento. Também penso na forma como foi feito. Prefiro um bolo cheio de açúcar feito por uma boa confeitaria do que um bolo sem açúcar, sem isso e sem aquilo feito por uma máquina e com receita desenvolvida em laboratório.

Pão de Fermentação Natural de Taioba — a PANC símbolo da Cia. Imagem: Ana Sachs

Pão de Fermentação Natural de Taioba — a PANC símbolo da Cia.
Imagem: Ana Sachs

 

Degustando Kombucha de Hibisco Imagem: Ana Sachs

Degustando Kombucha de Hibisco
Imagem: Ana Sachs

 

Produtos da Cia dos Fermentados Imagem: Ana Sachs

Produtos da Cia dos Fermentados
Imagem: Ana Sachs

Após extrair a água do repolho, colocamos os temperos e deixamos todos os potes, com os chucrutes de todos os alunos, descansando uns sobre os outros para que soltem ainda mais água. Enquanto aguardamos, pudemos provar os kombuchas, carro-chefe da marca, e algumas das conservas que eles vendem na loja virtual deles, acompanhadas de pães de fermentação natural: um feito com taioba (uma Planta Alimentícia Não Convencional – PANC, que é o símbolo da Cia) e outro de trigo integral. Muita conversa, muitos sabores, muitas novas amizades. Me senti realmente feliz de ter me inscrito neste curso.

Para fechar, colocamos nossos chucrutes em potes de vidro com o símbolo da marca estampado, uma folha de taioba. E levamos para casa mais carinho ainda: um saco de laranjas e limões colhidos do sítio dos donos da empresa. Não sei descrever o que senti, mas achei aquilo tão marcante, tão gostoso. Algo que raramente vemos hoje em dia – ou que nos desacostumamos a fazer. Dar um alimento que você viu crescer, que você colheu, ou um que você preparou, de presente para alguém tem uma energia que nenhum outro bem material pode dar. A comida, assim como as plantas e flores, são algo vivo, então eles carregam em si uma grande energia. Algo realmente especial acontece entre as pessoas que amam comida de verdade.

COMO FAZER O VERDADEIRO CHUCRUTE EM CASA

Imagem: Ana Sachs

Imagem: Ana Sachs

1 – O primeiro passo é lavar bem as mãos, até a altura dos cotovelos, com água e sabão. Em seguida, higienizar com álcool as mãos e todos os utensílios que serão usados no processo.

2 – Não é necessário lavar o repolho. Retire apenas as folhas mais externas, que tiveram contato com o ar e com o ambiente.

3 – Pique o repolho da forma que achar melhor. Quanto mais grosso, mais crocante ficará a conserva. Se picar mais fino, ela ficará mais úmida e molinha.

4 – Depois de picado o repolho, coloque-o em um recipiente higienizado com álcool e pese-o. O sal deve ser acrescentado em uma medida entre 1,5% e 2,5% do peso do repolho. Colocado o sal, amasse a mistura até que solte bastante água.

5 – Acrescente as especiarias que desejar. Algumas sugestões: sementes de mostarda (inteiras), endro, cominho, pimenta do reino e pimenta rosa (moídas em pilão).

6 – Coloque o repolho em um recipiente de vidro higienizado e aperte-o o máximo que conseguir, para que solte ainda mais água. Você pode colocar um copo por cima (também higienizado com álcool) para pressionar ainda mais o repolho para baixo da água. Ele não deve ficar em contato com o ar.

7 – Deixe a mistura descansar por três dias, coberta com um pano de prato ou gaze e amarrada com um elástico na base. Isso permitirá a entrada de ar, mas evitará a entrada de bichinhos indesejados.

8 – Após os três dias, o chucrute está pronto! Você já pode fechar o frasco e colocá-lo na geladeira, lembrando sempre de abri-lo diariamente para liberar os gases que se formarão todos os dias pela fermentação.

Para saber mais
Livro A Arte da Fermentação, de Sandor Ellix Katz (Editora Sesi)
Site Cia dos Fermentados

Imagem: A Cia dos Fermentados

Imagem: A Cia dos Fermentados