Comida

Artesanal é Legal

Vinícola artesanal brasileira é fechada e reacende a discussão sobre a produção artesanal no Brasil
Letícia Genesini
27 de junho de 2017

Junho foi um mês peculiar para nós amantes de comida de verdade. Começou com kombuchá sendo capa do paladar. Parecia que tudo ia bem, que seguíamos a passos largos em direção a uma  gastronomia que valoriza não só o salão do restaurante, mas também a cozinha, como a horta; uma gastronomia não só pessoal, mas cultural; não apenas de mãos de mãos de chefs, mas artesanal; e principalmente não somente de ingredientes de valor, mas que valoriza ingredientes locais e sazonais. Ainda acho que apesar, dos pesares, é nessa toada que caminhamos — Caetaneando um pouco “a esperança é um dom que eu tenho em mim” —, mas no mesmo mês tivemos um choque de realidade: a vinícola Arte na Vinha teve suas portas fechadas.

Conhecemos o vinho do Eduardo Zenker ano passado, por intermédio de Lis Cereja, da Enoteca Saint Vinsaint, ao produzir o festival O Gosto Como Experiência, quando, junto com a Sommelière de chá Nathalia Leter, trouxemos para o Brasil o filósofo Nicola Perullo. Nessa época, ano passado, estávamos dando nossos primeiros passos no universo dos vinhos artesanais e naturais (não, não são sinônimos, mas isso é pano pra outra manga), entendendo que vinho na maioria das vezes é como qualquer outro produto alimentício: cheio de aditivos e com uma produção de escala e padrão industrial. Buscando parceiros para o evento logo percebemos: muito mais fácil achar em São Paulo vinho artesanal da França ou da Itália, do que do Brasil. Na verdade, um dos vinhos do Zenker foi o único brasileiro que conseguimos servir, e ele é um dos poucos produtores locais que fazem vinho artesanal (sim, dá pra contar nos dedos das mãos todos).

Pouco a pouco, taça por taça, fomos (e ainda estamos) descobrindo o mundo dos vinhos artesanais e naturais, aquele que está no imaginário de quase todos: um vinho que tem seu sabor determinado pela uva, pela sua localidade, e pela história daquela safra; um vinho que fala da altitude do local, do frio ou calor que fez, das chuvas que caíram ou deixaram de cair, e da capacidade do vinicultor de extrair essa história em seu sabor. Diferente de um vinho em que se adiciona sabores, notas, e se simula uma história. Mas se nosso imaginário do vinho é povoado por uma produção artesanal, a realidade legal é outra: as normas de produção brasileiras impossibilitam tal produção.

Sem nem entrar no mérito das leis de agricultura familiar, que legislam aqueles que produzem até 20mil litros por ano (quando produtores como Zenker fazem algo como 5mil), as normas de produção de vinho possuem exigências que simplesmente obrigam a produção a ser industrial. Isso não quer dizer que esses vinhos são inaptos pelo consumo, muito pelo contrário, importamos vinhos artesanais da Borgonha, pagando caro por eles, e intitulando-os como os melhores do mundo, porém se os mesmos produtores do vale francês viessem produzir seus vinhos em terras bazucas, suas portas também seriam fechadas. É muito similar com o que acontece com o queijo de leite cru, em que é mais fácil importar do que produzir no Brasil.

“O que aconteceu com ele no fundo só mostra a real situação do produtor artesanal brasileiro: o dilema entre continuar artesanal e ser clandestino ou deixar de ser artesanal e se regularizar. Sim, pois a grosso modo é isso que acontece hoje em dia. Não existe lugar nas legislações para um pequeno produtor de vinho natural se regulamentar. Portanto, grande parte vive a vida na ilegalidade, sem poder comercializar oficialmente seus vinhos, enquanto lutam por mudanças ou adaptações nas legislações e normas de regulamentação. Sabemos que isso – regulamentação ou mudanças nela – no nosso país leva tempo, trabalho, requer muita influência, paciência e até alguma sorte. Até mesmo pessoas que se encaixam nas normativas tem dificuldade de estar 100% regularizadas. Imaginem então os produtores artesanais que nunca se encaixarão nessas normas. Pois é. Isso já aconteceu com o queijo de leite cru, com produtos de sangue animal, com o café. As legislações foram formularas em certa época para abranger a indústria de larga escala – mas a maior parte da tradição alimentar brasileira nunca foi de larga escala. E todos os produtos e métodos e agricultores tradicionais ficaram “orfãos”, sem se encaixar em nenhum tipo de legislação plausível. O vinho é só mais um desses produtos órfãos no Brasil”. Escreveu Lis Cereja em suas mídias sociais.

Após a notícia, Lis Cereja reuniu um grupo de apaixonados pela causa (nós incluso), criando a campanha Artesanal É Legal para discutir não apenas a produção artesanal de vinhos no Brasil, como a produção artesanal como um todo — lembrando que por mais que kombuchá tenha sido a capa do paladar, a ANVISA nem sabe como olhar para isso (e nós dizemos ainda bem, melhor não saber olhar, do que se recusar a isto). A primeira etapa da campanha é emergencial: ajudar Eduardo Zenker — quem quiser apoiar e conhecer confira o link do Catarse.

Gosto de dizer, ainda sem acreditar completamente, que isso acontece porque essas normas foram desenvolvidas em uma época em que já não havia mais produtores de vinhos artesanais no Brasil e se comercializava apenas os de produção industrial, assim desenvolvemos os padrões para se enquadrar à indústria e não o oposto — eu disse, “a esperança é um dom que eu tenho em mim”.

Pois, bem. Seja um desfalque histórico, seja ignorância, seja ma fé, o fato é as leis devem se adequar ao consumo que queremos. Durante esses dias passei por diversos estágios dessa decepção, da revolta ao desespero pelo caminho longo e turvo da produção alimentícia — juro, quando dizem que “quanto menos você souber de como é feita a política e salsichas, melhor você dorme”, a origem da carne acaba sendo a parte menos assustadora do processo —, mas por tudo isso, algo que tem sido de extrema importância é ter que explicar para quem olha de fora, repetidamente, porque eu me importo com tudo isso. Afinal é triste, mas é uma vinícola apenas, né? A legislação brasileira é complicada pra produção artesanal, mas onde que ela não é, né? Quem se importa mesmo com vinho, pode sempre importar, afinal, os da Borgonha são muito melhores, né?

É. Pois é. Há inúmeros motivos para se resignar. Ainda mais quando os motivos para resistir são da matéria mais sutil que há: é a vontade de de fato conhecer o vinicultor por trás da sua taça, é a ideia de que conscientizar o consumo tem um limite quando não se pode produzir algo que de fato vale a pena apoiar, e mais do que tudo é o incômodo fundo em pensar que um modo de produzir, que nos liga não só no imaginário, mas também no tempo da história possa não existir — lembrem-se, os produtores de vinhos artesanais brasileiros podem ser contados nos dedos das mãos, e eles só existem ainda por irem contra as normas de produção e por apoiadores que sabem que vale muito mais conhecer quem produz e como é produzido, do que um selo oficial. Não, não é caso de vida ou morte, não é nem um biscoito fino, é uma seda fina. Mas quando dizemos que comida é cultura é isso: é esse tecido fino, que ao mesmo tempo persiste e se esvai, que mas nos toca, mas recobre algo muito além de nós; algo que poderia muito bem não existir, e a vida bem seguiria não muito diferente, mas que triste perda seria.